As máquinas desejantes III
Assim, para compreender esse conceito de “máquina desejante”, é
necessário inseri-lo no campo social que faz parte da história, e para tanto, é
imprescindível abandonar todos os pressupostos adquiridos por meio das teses
científicas e/ou filosóficas mais clássicas e do senso comum ou do bom-senso.
Esse conceito será utilizado para subvertê-los, principalmente no que se refere
à tão confusa relação entre homem e natureza, natureza e máquina, assim como à
necessidade de sujeitos e de objetos específicos e determinantes para seu
funcionamento.
Por máquinas, costuma-se entender que se trata de algo não natural e
que não possui subjetividade – esses os dois principais aspectos que distinguem
as máquinas da natureza e dos seres humanos. Para Deleuze/Guattari, no entanto,
o termo funciona justamente para unificar todas essas categorias – homem,
natureza e máquina – em uma única definição. O humano, o natural e o maquínico
seriam a mesma coisa, na medida em que todos são processos de produção
molecular. Daí Gualandi ter razão ao atribuir um monismo à filosofia deleuziana.[1]
O homem, a natureza e o maquínico fazem parte de uma mesma natureza
desejante, na medida em que todos são processos de produção molecular. O
esquizofrênico se coloca aquém da distinção homem-natureza; não existem as
marcações que distinguem homem-natureza. “Há, por todo lado, máquinas
produtoras, ou desejantes, máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e
não eu, exterior e interior, já nada querem dizer.”[2]
É que o maquínico sempre esteve ligado ao terceiro reino, nem humano
nem natural, mas apenas técnico. O objetivo do Anti-Édipo é sustentar a
tese de que o ser em si mesmo é a-subjetivo e não natural, é anônimo e
artificial, ao mesmo tempo em que a reflexão ontológica passa a fundamentar-se
no acontecimento, no movimento e no processo, e não na coisa ou na essência.
Entretanto, não se pode pensar que a expressão “tudo é máquina” queira
dizer que tudo seja a mesma coisa. Tudo é o mesmo no sentido ontológico, não há
diferença alguma de natureza entre as coisas, assim como não há outra realidade
além desta. É assim que o tema da imanência se insere. Como define Deleuze em
seu último texto:
A imanência absoluta é nela mesma: ela não
está em alguma coisa, dentro de alguma coisa, ela não depende de um objeto, nem
pertence a um sujeito. Em Espinosa, a imanência não está na substância, mas a
substância e os modos estão na imanência.[3]
Já vimos que o inconsciente concebido como plano de imanência é povoado
por máquinas que ignoram qualquer tentativa de hierarquização entre si.
Trata-se de um plano em que nenhuma relação entre seus elementos é privilegiada,
e as relações que aí ocorrem não confluem para um fim preestabelecido, tampouco
se subordinam a alguma determinação primária e essencial.
Assim, o princípio unificador referente a todos os seres encontra-se
não em uma substância ou essência comum, mas no próprio movimento e processo de
composição-fragmentação das máquinas desejantes. Trata-se do princípio do
devir, aparentemente contrário à tese da univocidade do ser, por afirmar que
“nada é igual (...) tudo se banha em sua diferença, em sua dessemelhança e em
sua desigualdade, mesmo consigo”.[4]
É preciso ter em mente que, embora possa haver identidade de natureza
entre as máquinas, elas podem funcionar de modos distintos. A primazia
ontológica da diferença é garantida por esse plano de “anarquias coroadas”,
povoado por elementos heterogêneos, cujo funcionamento molecular é radicalmente
diferenciado. Desse modo, qualquer elemento define-se não pelo que é em si, mas
pela condição de devir possibilitada na relação com outros elementos.
Assim, grande parte da definição de máquina é dada por Deleuze/Guattari
negativamente, ou seja: não são representativas, são desprovidas de objetivos e
intenções, não possuem memória nem registros, enquanto positivamente são
definidas por seus modos distintos e específicos de funcionamento, molecular e
molar. De acordo com Deleuze/Guattari, “estas fórmulas são negativas só
aparentemente e em relação às leis de conjunto, mas devem ser entendidas
positivamente, em termos de potência”.[5]
Desse modo, as
categorias natureza e homem, ou natural e artificial, não têm a menor
importância para essa definição de máquina que se pretende distanciar do senso
comum. Para o senso comum, outra forma de conceber a máquina é vê-la sempre
conectada tanto ao homem quanto à natureza, mas, diferentemente do que temos
visto a partir de Deleuze/Guattari, o homem é o sujeito que opera a máquina,
enquanto a natureza é o objeto a ser dominado pelo homem e transformado pela
máquina.[6]
[1] Não seria o caso de
se confundir a tese da univocidade do ser que diz da natureza semelhante das
coisas, pois tal semelhança só se diz no sentido de uma ontologia. Diz
Gualandi: “O sistema do Ser unívoco é um sistema igualitário que não admite
nenhuma hierarquia ontológica entre as coisas existentes – a alma e o corpo, o
animal e o homem, o ser vivo e o ser não vivo. Se o Ser é idêntico em toda
parte, então não há uma entidade que possua maior valor ontológico. O sistema
da Natureza não é um sistema hierárquico, dividido em domínios cuja importância
é medida por seu grau de proximidade e de semelhança a um princípio supremo que
possui o Ser de modo iminente. O princípio do Ser unívoco afirma a imanência
absoluta do pensamento ao mundo existente, a recusa categórica de toda forma de
pensamento transcendendo o Ser das coisas em uma forma qualquer de suprassensível.
(GUALANDI, Alberto. Deleuze, 2003, p. 20.)
[6] Lemos,
nos versículos de 26b e 28 do Gênesis, que Deus não deu apenas ao homem a ordem
para povoar a terra, mas também para dominá-la. Toda a natureza foi criada para
uso do homem. Nesse mandamento, vemos o mandato para toda a verdadeira ciência.
Todo avanço na agricultura, criação de animais, transporte, energia, química,
medicina e outros campos é incluído neste termo. A estatura do homem foi
concebida para que ele pudesse efetivamente dominar sobre a natureza. Nos
versículos 29 e 30, é dito que tudo que o homem precisava foi lhe concedido em
abundância. Para os crentes, Deus criou não somente as coisas necessárias, mas
também variedade e beleza foram doadas visando à felicidade do homem.
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