As máquinas de guerra III
Pelo que foi dito, torna-se necessário construir uma máquina de guerra
que não tenha como fim a guerra, pois nós é que somos os lugares das batalhas a
serem travadas no campo de imanência. Campo de imanência com o mesmo sentido de
vida pura e corpo sem órgãos. Esse campo, onde circulam, “se organizam” ou se
dispõem as intensidades, forma um campo transcendental que Deleuze denominará
sucessivamente spatium (Diferença
e repetição), “superfície metafísica” (Lógica do sentido), “plano de
consistência” ou “corpo sem órgãos” (Anti-Édipo), ou ainda, “plano de
imanência” ou planómeno (Mil
Platôs).[1]
“É preciso, então, encontrar o agenciamento complexo capaz de efetuar esse
diagrama, operando a conjunção das linhas e das pontas de desterritorialização.”[2]
Os agenciamentos do desejo, assim como os dispositivos de Foucault, nada têm a
ver com ideologia ou repressão. Isso porque o desejo, enquanto força da
natureza, é da ordem molecular (só um desejo pode reprimir o desejo). Há, nessa
primeira ponta, um elemento de desterritorialização. No campo social, familiar,
por exemplo, já opera com a territorialização. No caso da sexualidade, desde o
nascimento, a preocupação de ser homem ou ser mulher: rosa para as mulheres,
azul para os homens. Brinquedos femininos de um lado e brinquedos masculinos do
outro. Há sempre o terror molecular de aparecer um querer, nesse caso, nem rosa
nem azul, mas todas as cores do arco-íris.[3]
Toda uma tecnologia que estrutura os contornos da sexualidade, certa tecnologia
cristã de subjetivação que inclui formas modernas de confissão.[4]
Vejo aí um efeito de repressão,
precisamente na fronteira do micro e do macro: a sexualidade – como
agenciamento de desejo historicamente variável e determinável, com suas pontas
de desterritorialização, de fluxo e de combinações – será assentada sobre uma
instância molar, “o sexo”. Mesmo que os procedimentos desse rebatimento não
sejam repressivos, o efeito (não ideológico) é repressivo, uma vez que os
agenciamentos são rompidos não só em suas potencialidades, mas em sua microrrealidade.[5]
Nesse caso, a repressão aparece como um efeito psíquico fantasmático em
forma de vergonha da diferença que pode saltar de um microefeito. Há sempre um
elemento molecular que foge à regra pronto para desterritorializar, “há sempre
um filho que foge para a Califórnia”. Seguindo Deleuze, podemos “roubar” a
noção de simulacro ao estabelecer uma relação com os fantasmas da psicanálise: o
simulacro platônico constitui o fantasma – falso pretendente, eis que em muito
afastado da Ideia – que dá essência ao verdadeiro pretendente no mundo da
representação legítima.
Nesse sentido, o simulacro se constrói a partir do desvio do mundo das
Ideias, de sua subversão. Por sua dessemelhança, o fantasma se configura como
falso pretendente e deve ser recalcado, submerso, em função da emergência da
verdadeira cópia, que reproduz certa essência original.[6]
O julgamento que recai sobre o indivíduo diferenciante pode converter-se na
vergonha da diferenciação. O elemento que o submete ao juízo é um fantasma da
Ideia da semelhança, de não ser igual aos outros.
A máquina de guerra é então constituída por dois níveis de realidade:
molar e molecular. Sem ilusões pueris, o guerreiro deve estar atento a seu
objeto de combate, seu próprio desejo: de submissão ou de dominação despótica.
Em determinados momentos, pode ser a vergonha que transforma o desejo em desejo
de submissão, quando o grito dos desvalidos pede “menos pão”. Então, o corpo
sem órgãos já estará canceroso. A máquina de guerra e o combate envolvem a
difícil arte dos encontros intensivos dos corpos sem órgãos e a condução do
organismo no melhor de seus estados de funcionamento.
Em síntese, uma arma de guerra, seja qual forem suas peças, seus
aparelhos, suas engrenagens, é a arte de construir corpos sem órgãos. Dito de
outra maneira, é a arte de fazer de cada corpo sem órgãos um lugar na vida, de
“variação intensiva”.
Segundo Deleuze, em Conversações, a máquina de guerra opera por
agenciamentos lineares e linhas de fuga. Nesse momento, Deleuze se remete ao
conceito fundamental da psicanálise. Quando uma linha de fuga se transforma “em
linha de morte, não invocamos uma pulsão interior do tipo ‘instinto de morte’,
invocamos também um agenciamento de desejo que põe em jogo uma máquina
objetivamente ou intrinsecamente definível”.[7]
As linhas de fuga como forma de combate têm inspiração especial em
Kafka, que, ao escrever, é arrastado por uma “linha de fuga” carregada de ambiguidade.
A máquina de guerra e as linhas de fuga se misturam e, como nos demais
conceitos, correm por vias de possibilidades imprevisíveis. “As linhas de fuga
não são forçosamente “revolucionárias”, podendo ocorrer o contrário disso, mas
são elas que os dispositivos de poder vão colmatar, vão atar”.[8]
[1] “O alfabeto do pensamento”. Prefácio de
José Gil. In:
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2000, p. 27. A dispersão desse tema na obra e a diversidade dos
termos correlatos podem ser notadas também em ZOURABICHVILI, François, op.
cit., pp. 39-47.
[2]
DELEUZE, G. “Désir et plaisir”. Magazine Littéraire. Paris, n.
325, oct. 1994, pp. 57-65. A tradução se
encontra no endereço eletrônico http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art06.pdf.
[3] Queer,
originalmente, designa o homossexual, em linguagem coloquial e pejorativa, cuja
tradução para o português brasileiro seria “bicha”, “veado”. Entretanto, a
partir dos movimentos de afirmação homossexual dos anos 70, queer passou
a designar o sujeito homossexual dotado de uma consciência política e não
identificado com o discurso heterossexual dominante.
[4] Em
francês, há dois termos para a palavra confissão: aveu e confession.
O primeiro, mais geral, siginifica “declarar”, “admitir”; o segundo, por sua
vez, tem o sentido religioso estrito do sacramento. Segundo a nota do tradutor
para o português, os termos são empregados como sinônimos no texto (FOUCAULT,
M. História da sexualidade, p. 58).
[5] DELEUZE,
G., “Désir et plaisir”, pp. 57-65). A tradução se encontra no endereço
eletrônico http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art06.pdf.
[7] DELEUZE, G. In ZOURABICHVILLI, F. O vocabulário de Deleuze.
(Tr. André Telles, p. 64).
[8] DELEUZE, G., “Désir et plaisir”, pp. 57-65.
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