Sujeito em Deleuze/Guattari II

É na pessoa do moribundo, quando a vida joga com a morte, momento crítico em que o sujeito enquanto identidade no mundo cede lugar à própria vida. Quando a vida subsiste em um indivíduo que é pura singularidade. O que acontece com esse indivíduo que se vê entremeado por duas potências (vida/morte)? 

O que ainda resta de Eros nesse corpo que é conduzido para a morte? Um paradoxo. É a morte de um sujeito, mas o nascimento de uma beatitude. O indivíduo alcança o ápce de uma hecceidade quando desligado de tudo que o submete, sujeitos e objetos, ele é uma singularidade em todo universo. Esse sujeito se desfaz em detrimento da mais pura potência. 

São Paulo, a sua maneira, tentou dizer da morte de um sujeito, mas se equivocou ao colocar em seu lugar outro sujeito identitário de pretensões universais. Nas palavras Aos romanos, “já não vivo eu, mas Cristo vive em mim”, ele não faz mais do que substituir uma figura pela outra, uma identidade psicológica por uma subjetividade teológica. Muito pouco provável que o sujeito se desfaça em Cristo, pois o eu identitário apenas passa a somar com outro sujeito que se unifica subjetivamente no sujeito psicológico Paulo. 

Ou seja, é impossível que o Cristo não seja a representação em perspectiva do “eu” que pensa estar morto. É a natureza mesma de São Paulo, subsumida nos ideais do cristianismo que se fortalece. Ele tem uma meta, um alvo a ser perseguido até a morte, expandir o cristianismo ao limites do mundo. 

Uma beatitude (beata) de outra ordem que não entra em hecceidade. São Paulo está mais próximo da paranóia. Ao contrário, do Homo tantum[1] de Deleuze e o Homo natura[2] de Deleuze/Guattari é o mesmo esquizo, ele se constitui num processo que não pode ser “tomado por uma meta, um fim, nem confundido com sua própria continuação ao infinito”[3]. Nos dois casos, “processo e continuação ao infinito”, dá no mesmo lugar, a paralisação. 

Deleuze/Guattari seguem pela dispersão do sujeito, não se trata de uma substituição onde um sujeito se subsume no outro: natureza pecaminosa escondida na divindade de um deus. 

A dispersão do sujeito está mais próxima de um misticismo ateu, como diz Deleuze, “a vida de um indivíduo é lançada no mais puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade do que acontece”. Uma vida individual que se desfaz em singularidades moleculares, moventes ou nômades. Nesse momento, se um eu ainda persiste, só pode ser de uma espécie de “eu rachado”.

Se as singularidades presidem a gênese dos indivíduos e das pessoas, conforme Deleuze[4], por outro lado são elas mesmas que dissipam os sujeitos. “(...) elas se repartem em um ‘potencial’ que não comporta por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se, as figuras desta atualização não se parecendo em nada ao potencial efetuado”[5]

O Eu passa a ser apenas uma síntese de unificação das singularidades, nesse caso, uma singularização é diferente de uma subjetivação.


[1]DELEUZE, G. L’immanence: une vie..., Philosophie nº 47, 1995, p. 5.
[2][2]DELEUZE, G./GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972, p. 11 (Tr. Luiz B. Orlandi, p. 15).
[3] DELEUZE, G./GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972, p. 11 (Tr. Luiz B. Orlandi, p. 15).
[4] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditios de Minuit, 1969, p. 124 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 105).
[5] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditios de Minuit, 1969, p. 124 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 105).

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