Figura cristã no santuário IV

Para inventar uma neurose coletiva, é preciso prometer a exaltação dos fracos e, como eles são a maioria, formar-se-á um terrível exército. Para isso, é preciso fazer uma grande torção na figura do imaculado. “Farão dele o herói da alma coletiva e o obrigarão a devolver à alma coletiva aquilo que ele jamais quis dar. Ou melhor, o cristianismo vai dar-lhe aquilo que ele sempre odiou, um Eu coletivo, uma alma coletiva”.[1]
O Jesus amante dos pobres e dos injustiçados se transforma em seu vingador em escala universal. “Ele, que não julgava e não queria julgar, será convertido numa peça essencial do sistema de juízo. Pois a vingança dos fracos” (só aos fracos é dado o poder de julgar, espécie de recompensa por uma existência inteira de dor e sofrimentos), “ou o novo poder, é mais precisa quando o julgar, e a abominável faculdade judicativa torna-se a faculdade mestra da alma”. (Sobre a questão menor de uma filosofia cristã: sim, há uma filosofia cristã, não tanto em função de crença, mas a partir do momento em que o julgar é considerado uma faculdade autônoma, tendo necessidade, por esse motivo, do sistema e da garantia de Deus.)
O Apocalipse triunfou e jamais conseguimos sair do sistema do juízo. “E vi tronos, e aos que neles se assentaram foi dado o poder de julgar.”[2] O cristianismo é a glorificação dos fracos. O espírito que transformou Cristo em “conquistador, todo-poderoso, destruidor”[3] não tem relação alguma com o Cristo Salvador. O apocalipse é a promessa de poder de julgar os soberanos, uma operação de reversão da hierarquia: pobres e desvalidos que julgam os poderosos. Mas a instância de juízo é a mesma, um plano de transcendência e de organização. Tudo aquilo de onde a ordem emana – a ordem, a realidade e a verdade – emana desse plano.
O Apocalipse, em suma, é o livro que revê as razões da dor e do regozijo dos desvalidos. Se nunca houve uma explicação para a dor, para as destruições, para as injustiças, as desordens e os desequilíbrios na natureza e na vida, O Apocalipse é a revelação final dessas causas.



[1] Idem, p. 54.
[2] DELEUZE,G. Critique et clinique. Paris: Les èditions de Minuit, 1993, p. 56 (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 50.
[3] DELEUZE,G. Critique et clinique. Paris: Les èditions de Minuit, 1993, p. 55 (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 49).

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