O Apocalipse de D. H. Lawrence VI

João Calvino interpretou na doutrina da predestinação o mais injusto prejudicativo. Metade da humanidade já nasce condenada; a outra metade, mesmo que não queira, já nasce salva.[1]
Os juízes já condenaram os culpados que nada sabem. Nos três estratos, é a formação de um Eu que se funde em alma coletiva. Um Eu bem fundado em convicções, de maneira que não haja conexões com a coletividade. “Um eu não é uma relação; é um reflexo, o pequeno clarão que produz um sujeito, o clarão de triunfo num olhar”.[2]
O Eu já perdeu suas simpatias e antipatias, já não mais se relaciona com a alma, mas com o mundo que já morreu. A grande estratégia de combate é deixar de pensar como um Eu para “viver como um fluxo, um conjunto de fluxos, em relação com outros fluxos, fora de si e dentro de si próprio”.[3] É enganoso pensar que o “aniquilamento do eu em Cristo” colocaria a alma individual em correntes de fluxos.
O tal “aniquilamento” forma um Eu muito mais estratificado, de tamanha convicção que impede a entrada dos afectos de outra ordem de convencimento. Como lembra Deleuze, “a alma, como vida dos fluxos, é querer-viver, luta e combate. Não só a disjunção, mas também a conjunção dos fluxos de luta e combate, abraço”.[4]
O aniquilamento do Eu não passa pela morte do indivíduo; o Eu é convidado para a guerra, por isso o Apocalipse é o livro da guerra final. Há uma recusa da alma em detrimento da ressurreição do Eu coletivo: em verdade, não é o Eu que morre, mas o indivíduo que perde a força ao transferi-la para o Cristo do cristianismo.
Não é a guerra que interessa, mas o combate em favor da alma que cresce quando se deixa de ser um Eu para se lutar. “É preciso conquistar essa parte eminentemente fluente, vibrante, lutadora”, para que seja possível reencontrar o máximo de conexões/disjunções, “para permitir a passagem dos fluxos ou sua alternância”.[5]
Seria possível produzir nos estratos essa movimentação dos fluxos, disjunções/conjunções? Sim, pois, antes de tudo, as disjunções/conexões são movimentos operatórios das relações da física com o cosmos. “Mesmo a disjunção é física, ela só existe como as duas margens, para permitir a passagem dos fluxos ou sua alternância.”[6]
Não cabe mais a separação entre natureza e sociedade. Partimos do mundo físico para abstrair fluxos que embaralham os estratos e as formas de tal maneira que seja possível reinventar outro sistema. O que vimos acima é uma relação da física traduzida em questões lógicas. Ou seja, uma troca de símbolos por imagens, dos fluxos por seguimentos, trocas recortadas em sujeitos e objetos em que, finalmente, o mundo morreu ao se conjugarem todas as trocas no arremate de alma coletiva em torno de um Deus único, de um déspota ou de um Eu paranoico. Há falsas conexões, isso fica claro em São Paulo ou João de Patmos, que se apropriaram do Cristo pacificador e o transformaram em homem de Estado.[7]



[1] “E aos que predestinou a estes também chamou; e os que chamou também justificou (...)”
Segundo o conceito calvinista, Deus estabeleceu dois decretos: um selecionando o grupo de salvos; outro, o grupo dos perdidos. Calvino mesmo disse que este é o “terrível decreto de Deus”. A obra em que se encontra a doutrina da predestinação de João Calvino é As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. Edição latina de 1559. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, 4v.
[2] DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 68.
[3] Idem, ibidem.
[4] Idem, ibidem.
[5] Idem, p. 69.
[6] Idem, pp. 68-69.
[7]  Deleuze faz referência a Cristo como um aristocrata. Em Nietzsche e São Paulo, D. H. Lawrence e João de Patmos, há boas referências ao Cristo pacificador. Tudo indica que o cristianismo nada tenha a ver com esse Cristo solitário de que nos fala Deleuze (Critique et clinique, pp. 50-60. A alma coletiva que o poder atribui ao Cristo, segundo Deleuze, é tudo o que ele sempre evitou. É o Anticristo que violenta o Cristo (Critique et clinique, p. 55).

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