Sujeito IV

Estávamos falando da morte como experiência limite, em certo sentido, “o limite absoluto de toda experiência e de todo pensamento. Ela é mesmo o impensável, o inexperimentável, o inonimável”[1]. O homem que “morre” sem morrer (homo tantum) que desfila por toda a história, ou o homem que vive com as estrelas (homo natura) são, ao mesmo tempo, o homem que experimenta a morte como momento de passagem, esse momento que desliga o sujeito quando o afeta. 

Ele vive na impessoalidade, por isso, a linha indiscernível que ele traça é o seu passeio. Tornar-se indiscernível com as moléculas é a mais alta potência da vida. A língua só pode ser traduzida no impessoal, que é a única possibilidade de uma língua subsistir no acontecimento, o sujeito gramatical só pode ser do impessoal que se avizinha da morte para se expressar como simplesmente uma vida e nada mais. 

O que Deleuze faz com o Homo tantum, e “a revelação de ‘uma vida’ pela morte’ (...) que só se conquista pelo impessoal”[2]. Dele, nada se pode falar já que não é mais um sujeito que se remete a um objeto. As coisas de antes e de depois já se encontram abolidas, tudo se retira da cena e já não podem ser nomeadas senão no indefinido.

O problema continua sendo o de trazer o homo tantum para o campo prático da política. Já sabemos que ele é conduzido para o plano de imanência. O próximo passo é construir um plano de consistência para que esse Homo tantum seja plausível em planos práticos. Em que momentos ele pode emergir e fazer-se presente na vida política? Deleuze o encontra na literatura. Não se pode escrever sem se misturar com a própria vida, não a vida do indivíduo psicológico, mas a vida pré-individual dos personagens que são criados, nas situações que são criadas.

 “É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”[3]. O plano de consistência é o que proporciona as condições da criação, que é ela mesma, a fuga de si. Evadir-se para que as condições de criação sejam possíveis a partir do bloco de imanência que se abre entre as definições genéricas. “O homem genericamente falando” não entra nesse estado “entre”, por isso não há devir-Homem, “uma vez que o homem se apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria (...)”[4].

 É o homem que tem que morrer primeiro. A primeira tarefa política consiste no assassinato do “homem genericamente falando”, dele nem mesmo a mulher escapa. A própria mulher terá que abrir mão dos “termos genéricos homem” para se tornar mulher e entrar em devir-mulher. A propalada libertação feminina não passou de uma mimese. Depois dela, a mulher nunca se pareceu tanto com o homem, nunca se identificou tanto com a masculinidade do homem. 

Evadir-se da identidade da forma-Homem não é cair numa imitação, “mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula (...)[5]. Povoar o campo com “imprevistos, não pré-existentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população”[6]

Não sentido melhor do que “morrer-se” para abolir as coisas que identificam o sujeito às formas e retirar-se numa ausência estratégica para passar a habitar o meio. É na literatura que se descobre nas “pessoas (escritor) aparentes a força de um impessoal que não é de modo algum uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau”[7]

Quando se experimenta esse “mais alto grau de singularidade”. é possível que se esteja habitando um “plano de consistência” e se passe para o lado dos indefinidos: um homem, uma mulher, uma criança, um animal. Uma micropolítica começa quando “nasce em nós uma terceira pessoa que nos despoja do poder de dizer ‘eu”[8].

 O plano de consistência estará pronto quando essas potências, que incluem o universo da linguagem, libera o sujeito  de sua dependência de enunciar-se através de uma condição que se pré-determinou por outrem e que lhe determinou um eu psíquico, imobilizado em seus vividos, “ele salta, graças ao operador ele, para o plano de enunciados que dizem o acontecimento puro”[9]

Tornar-se imperceptível é o primeiro passo de uma micropolítica, e Deleuze ressalta na obra de Blanchot esse acontecimento que é a “própria condição de enunciação”.



[1] Cf. René Schérer. Homo tantum – o impessoal: uma política. In Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (Org.) Éric Alliez. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 22.
[2] Cf. René Schérer. Homo tantum – o impessoal: uma política. In Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (Org.) Éric Alliez. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 29.
[3] DELEUZE, G. Critique et clinique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993, p. 12 (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 11).
[4] DELEUZE, G. Critique et cliniqu. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993, p. 12 e (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 11).
[5] DELEUZE, G. Critique et clinique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993, p. 12 (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 11).
[6] DELEUZE, G. Critique et clinique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993, p. 12  (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 11).
[7] Cf. René Schérer. Homo tantum – o impessoal: uma política. In Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (Org.) Éric Alliez. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 26.
[8] Cf. René Schérer. Homo tantum – o impessoal: uma política. In Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (Org.) Éric Alliez. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 26 (Cf. Deleuze, G. Critique et clinique, p. 13).
[9] Cf. René Schérer. Homo tantum – o impessoal: uma política. In Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (Org.) Éric Alliez. São Paulo: Editora 34, 2000, PP. 27 – 28.

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