Segunda síntese III

É verdade que o capitalismo não teme os fluxos decodificados, mas temos de reconhecer a operação que ocorre em nível micropolítico. A ausência de temor das sociedades capitalistas se justifica no fato de a família já estar operando indevidamente o interior das sínteses. O capitalismo descansa no trabalho bem elaborado pela edipianização. Mas ainda lhe resta um terror, ou seja, de que as máquinas funcionem continuamente em seu uso devido. O que ocorreria nesse caso: a sociedade inteira seria esquizofrênica? Provavelmente não, pois os indivíduos se encarregariam de segregar as sínteses indevidamente. Há um fascismo molecular do povo, mas primeiro o fascismo é do indivíduo. Mas voltemos à síntese disjuntiva de registro:

O processo como processo de produção se prolonga em procedimento como procedimento de inscrição. Ou melhor, se chamarmos libido ao ‘trabalho’ conectivo da produção desejante, devemos dizer que uma parte desta energia se transforma em energia de inscrição disjuntiva (Numen). Transformação energética.[1]

O divino, neste caso, refere-se ao caráter da energia de disjunção. Deus diz pela boca de Moisés, eis que Eu Sou a vida e a morte, a luz e a escuridão, o bem e o mal. “O divino de Schreber é inseparável das disjunções nas quais ele se divide em si mesmo.”[2]

O Deus do delírio o é de todos os impérios superiores, mas é também superior, inferior, Deus homem e Deus mulher. “As disjunções são a forma da genealogia desejante”,[3] e Édipo se propõe a domesticar uma matéria e uma forma de genealogia que escapa por todos os lados. 

Em lógica da sensação, Deleuze associa o corpo sem órgãos de Artaud ao corpo da histeria: “Há muitas aproximações ambíguas na vida, o corpo sem órgãos, o álcool, a droga, a esquizofrenia (...), mas à realidade viva desse corpo podemos nomeá-la de histeria e em que sentido?”[4]
O corpo sem órgãos é percorrido por “uma onda de amplitude variável”, traçando linhas, perfazendo gradientes, “limiares e níveis segundo as variações de sua amplitude”. Em cada encontro de onda e das forças exteriores, uma sensação aparece, um tremor. Os órgãos são miraculados nesses encontros, mas eles são de curta duração, só permanecem “durante a passagem dessa onda, e a ação dessa força é que vai se deslocar para outro lugar”. 

Temos, assim, um corpo esquizofrênico, os órgãos perdem sua constância e localização, bem como sua função. Como ficou marcado, “a boca anoréxica serve para defecar”. Os órgãos sexuais aparecem em toda parte.

Como podemos falar em corpo sem órgãos ao nos referirmos ao corpo? “Ao corpo sem órgão, não faltam órgãos, o que lhe falta é o organismo.” Os órgãos não estão submetidos a uma organização de órgãos. O que determina o corpo sem órgãos é um indeterminado, pois ele é imanência do desejo. 

Ao passo que os órgãos são determinados e definidos por seu funcionamento e lugar. No campo de forças do corpo sem órgãos, uma boca pode tornar-se ânus. “Assim, compõe-se uma série: sem órgão-órgão indeterminado polivalente – órgãos temporários e transitórios”.[5]
Daí a admiração de Deleuze pela pintura de Francis Bacon: ele cria zonas de indiscernibilidade no corpo. O que são os ossos do corpo? Apenas estrutura espacial (...) e até os ‘aparentados da carne’, os ‘aparentados do osso’”.[6] 

Bacon faz saltar, na pintura, um como estrutura relacional do outro. A relação osso/carne de um corpo só aparece na carne quando lhe falta o osso. Essa revelação do corpo desorganizado, “carcaças em potência”, só pode ser percebida a partir da visão esquizofrênica.

Como pôde a psicanálise pretender dar conta do Deus superior de Schreber quando esse Deus se apresenta disjunto, sob a forma de irmão mais velho e, ao mesmo tempo, sob a forma de um Deus inferior? 

É que o jogo esquizofrênico está sempre pronto a acrescentar novas peças ao jogo, algo semelhante ao Go, que acrescenta um novo e inesperado movimento a cada obstáculo ou desafio. O Go é um jogo esquizofrênico. 

É difícil imaginar Schreber diante de um analista com a produção de enunciados que lhe são próprios. Segundo Deleuze/Guattari,

Mas é claro, sim, sim, os pássaros falantes são moças, e o Deus superior é papai, e o Deus inferior, meu irmão. Mas, discretamente, reengravida todas as moças de todos os pássaros falantes, e seu pai do Deus superior, e seu irmão, do Deus inferior, todas as formas divinas que se complicam ou antes ‘se dessemplificam’, à medida que vão aparecendo sob os termos e funções demasiadamente simples do triângulo edipiano.[7]

O código de registro esquizofrênico não coincide com o código social. A psicanálise depende de determinado código social para funcionar. O esquizofrênico passa de um código a outro sem parar; ele embaralha todos os códigos, embaralhando a interpretação psicanalítica. Nesta segunda síntese passiva, o corpo pleno sem órgãos volta a atrair a produção desejante.




[1] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe,  p. 19.
[2] Idem, p. 19.
[3] Idem, p. 20.
[4] DELEUZE, G. Francis Bacon, Logique de la sensation. Tradução de Roberto Machado. Paris: Editions de la Différence, 1984,  p. 34.
[5]  DELEUZE, G., Francis Bacon, Logique de la sensation, pp. 34-35.
[6] Idem, p. 48.
[7] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe,  p. 21.

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