Esquizofrenia... VIII

No choque das máquinas desejantes com o corpo sem órgãos, há sempre um efeito caosmótico que obriga as máquinas ao reordenamento da superfície estriada. Desse encontro, resulta não apenas o reordenamento, mas também, por ser forçada, a natureza apresenta o novo. O conceito de máquinas desejantes é subtraído desse novo material clínico complexo – corpo sem órgãos que repele as máquinas que se aferram a ele.
De acordo com Zourabichivilli, esse é o segundo momento que Deleuze enfrenta como crucial de seu pensamento: “Depois do tema da univocidade e da distribuição nômade”, ele tem de “articular as duas dinâmicas inversas e não obstante complementares da existência – de um lado, a atualização de formas e, de outro, a involução que destina o mundo a redistribuições incessantes?”.[1]
Estamos impregnados demais do sentido psicanalítico de “morte” que o senso comum transmite ao termo “pulsão de morte”. Que morte? Lendo Deleuze/Guattari já no contexto de corpo sem órgão, o que aparece nesse interstício, tendo, de um lado, as máquinas desejantes (formas) e, de outro, um plano de matéria preformada, um movimento constante de metamorfose que opera uma abertura para um futuro que nunca acaba de chegar, devir portanto. Ou seja, o sentido brota do jogo de forças que nunca estão sob o controle dos seres.
Esse complexo sistema de singularizarão (si-mesmo) introduz nos corpos tamanha complexidade que decide por si mesmo a diferenciação ininterrupta. Um indefinido decide o que será antes da manifestação consciente; não é o sujeito em questão que tem o poder de decidir.
O sentimento manifesto no fenômeno de sexualidade é atrasado em relação ao afecto que o constitui. Estamos diante de uma situação molecular que propicia as formações molares. As linhas de resistência política não alcançam esse limite micropolítico. A política de grupos trata apenas do combate aos aparelhos de repressão do que já existe no mundo das formas. Quanto a esse aspecto, lembra Foucault, “foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou objeto de lutas políticas, mesmo que estas se formulem através de afirmação de direito. O direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades”.[2]
 Em planos de uma ontologia política, a tarefa é evitar afastar os devires sensíveis dos encontros, das máquinas desejantes-corpo sem órgãos. Essa relevância ética da política do corpo sem órgãos deve incluir a vontade de morrer como parte do sistema complexo que faz com que as máquinas retornem sempre a um elemento incansável que o repele insistentemente.
Há sucessivas mortes nesse retorno,[3] além da morte por cansaço, que seria a morte final de todos os organismos vivos. Só sobrevive o fluxo germinal intensivo, para onde todo ser vivo deseja retornar. Há essas duas políticas em questão: a primeira, desse eterno retorno silencioso (micropolítica de operações moleculares); a segunda, para impedir a primeira. O fluxo germinal provém do gérmen originário do corpo sem órgãos, ele flui “no sentido da diferenciação somática, em função do código (genético) naturalmente inscrito sobre o corpo sem órgãos.
Essa diferenciação é regida pelo princípio de neguentropia, e dá origem às pessoas molares.[4] Ao mesmo tempo, há o movimento inverso, “isto é, do soma para o gérmen”, que vai no sentido da “des-diferenciação regida pelo (regime) de entropia, que redescobre as máquinas desejantes em seu nível molecular”.[5]
Esse modo de funcionamento garante a expansão da vida, que é seu sentido essencial, crescer, subir quer a vida, diria Nietzsche nesse caso. Uma máquina abstrata estaria “de plantão” para impedir esse retorno do fluxo germinal intensivo ao gérmen do corpo sem órgãos.
A psicanálise baseada no mito da horda selvagem inventou o incesto infantil, mas os psicanalistas poderão dizer que é tudo uma questão de “desejo de retorno ao seio materno”. Os moralismos que aparecem por aqui têm como fundamento-causa tomar o efeito como causa. Essa inversão estaria na base dos preconceitos quanto à questão do desejo do masoquista, entre outros.
A pulsão de morte enquanto fluxo germinal intensivo que deseja o retorno ao gérmen originário não pode ser impedida por uma teoria moral. É da natureza do fluxo retornar sempre. Considerou-se (psicanálise) a pulsão de morte o pano de fundo de todas as investidas contra a vida, ou seja, a morte como efeito de uma causa comum, que seria a pulsão de morte


[1] ZOURABICHVILLI, F., op. cit., pp. 15-17.
[2]  FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité, I. La volunté de savoir. Paris: Gallimard, 1976, p. 191.
[3] Podemos evocar aqui a voz do Corvo, de Edgar Allan Poe: o Corvo canta incansavelmente, “Never more”, “never more”, “never more...”. Em cada retorno das máquinas desejantes ao corpo sem órgãos, nunca mais as coisas são as mesmas; tudo que retorna não retorna o mesmo, tudo que chega não chega para permanecer.
[4]  FURTOS e ROUSSILON, op. cit., p. 45.
[5] Idem, pp. 45-46.

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