Figura cristã no santuário II

O ressentimento não suporta nada que é ativo, não tem como, é da essência do ressentimento. A maior lembrança e a mais vívida memória no Ocidente cristão é a do Cristo crucificado. “Concluir-se-á imediatamente que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhuma altivez, nenhum gozo do instante presente poderiam existir sem a faculdade de esquecimento.”[1]
O povo de Israel é um povo de memória, os estatutos, as leis e os juízos devem ficar na memória, para serem repetidos pelos pais aos filhos: lembra-te! É o imperativo que mais se repete no Antigo Testamento. Mas a imagem de maior alcance, a marca de maior comoção, é a da cruz com seus cravos e espinhos: ela se encontra em cada tribunal, nas maiores praças do mundo, pois foi esculpida no centro do mundo.
Moisés trouxe o santuário inteligível para a realidade sensível. São Paulo e, depois, João de Patmos fizeram a maior das reversões: elevaram os objetos do santuário terrestre às alturas celestiais. Com o cristianismo, as ofertas do sacrifício diário foram completamente extintas. O santuário terrestre foi construído por Moisés conforme o modelo mostrado no monte que encontraria sua finalidade na cruz de Cristo: ele, segundo Paulo, é o cordeiro de Deus. Com a morte de Cristo, o ritual de sacrifícios encontra seu fim e o santuário se desloca da Terra para uma máquina abstrata e celeste. O santuário terrestre, com seus atributos, perdeu a finalidade: o modelo encontrou-se com as cópias.
A visão universalista de São Paulo elevaria o sistema de juízo de Deus para além das fronteiras de Israel. O céu acima de nossas cabeças não é mais o céu judaico sobre as 12 tribos eleitas, o céu de São Paulo é universal. Os compartimentos santos do santuário eram “figuras das coisas que estão no céu”. Agora, não mais o sacerdote terrestre, mas o Cristo que ascendeu aos céus, que se transformou no Sumo Sacerdote celestial, é o “ministro do santuário que é o verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e não o homem”.[2]
João, o mesmo João Evangelista, viu esse santuário celestial. Ele contemplou uma visão da santa cidade celestial e ali viu “sete lâmpadas de fogo” que ardiam diante do trono. Viu o anjo, “tendo um incensário de ouro; e foi-lhe dado muito incenso, para o pôr com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro, que está diante do trono”.[3] É o mesmo trono no qual se assenta o juízo, mas João de Patmos, como bem desconfiou Lawrence, não parece o mesmo evangelista. Aquele amável discípulo que, na Santa Ceia de Leonardo Da Vinci, se encontra quedado amavelmente para o Cristo não é mais o mesmo do Apocalipse.
Ele deixou para trás a máscara de discípulo amado para encarnar as vestes sacerdotais do juízo moral. O Apocalipse de João, como bem mostrou Deleuze, representa o afeto dos pobres que ficaram com sede de justiça contra o império.



[1]  NIETZSCHE apud. DELEUZE, G., Nietzche e a filosofia, p. 171.
[2]  Bíblia (Hebreus, 9: 9, 23; 8: 2).  
[3]  Bíblia (Apocalipse, 4:5; 8:3)

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