Figura cristã no santuário III

Não existe nada mais individual do que a filosofia do Cristo, nada mais aristocrático do que o estilo de vida do jovem da Galileia. Conforme Deleuze, “o indivíduo não se opõe tanto à coletividade em si; o individual e o coletivo se opõem em cada um de nós como duas partes distintas da alma. Ora, Cristo se dirige pouco ao que há de coletivo em nós”.[1] Seu problema era, sobretudo, desfazer o sistema coletivo do sacerdócio do Antigo Testamento, do sacerdócio judaico e de seu poder, mas só para libertar a alma individual dessa ganga.[2]
O problema para São Paulo deveria ser o de tornar a mensagem aristocrática do homem da Galileia uma mensagem de alcance universal. Com Cristo, não havia mais sacrifícios diários. Ele mesmo expulsara do templo os vendedores de animais que serviam de sacrifício. Para a ira dos sacerdotes, entrava em relação direta com o indivíduo e perdoava-lhes os pecados. Ao morrer na cruz, o véu que separava o santo ofício do santíssimo foi rasgado de baixo para cima, sinal de abolição de todo sacrifício. Eis toda a razão do ódio da casta sacerdotal.
Segundo São Pedro, com Cristo, “vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido”.[3] As correlações do cordeiro morto com Cristo, o cordeiro de Deus, são muito precisas e muito bem montadas. A passagem do santuário terrestre para o celestial resultou no projeto político mais bem-sucedido no Ocidente cristão.
O cristianismo de São Paulo e de João é a dissidência judaica de maior repercussão na história. O cristianismo apropriou-se dos utensílios de culto nacional do judaísmo e elevou-os ao simbolismo máximo. O efeito restrito a um povo passou a valer para a humanidade inteira. O efeito apocalíptico fez do cristianismo um juízo universal. Não foi o Cristo da pequena aldeia de pescadores. O verdadeiro cristianismo que triunfou se encontra em São Paulo e no Apocalipse de João.
Em João de Patmos, não é mais só o povo judeu que entra em juízo, mas também a humanidade, que se encontra permanentemente sob investigação judicial. Mas, ao mesmo tempo, os eleitos de Deus, os santos, receberam a faculdade judicativa. Todos receberam títulos de poder, uma nova raça de sacerdotes. Como bem diz Deleuze, “será preciso que o sacerdote cristão substitua o sacerdote judeu, mas com o risco de que ambos se voltem contra o Cristo”.[4]
É curioso como homens simples, pescadores iletrados, camponeses e pastores de ovelhas podem transformar-se em pessoas tão cínicas. É a vontade de julgar que, somada à vontade de nada de vontade, fez uma consciência se encher de convicções. O iletrado pregador da praça pública grita palavras de condenação. Os veículos de comunicação, ocupados diariamente pelos pregadores, condenam a audiência. “Quero julgar, é preciso que eu julgue! Vontade de destruir, vontade de introduzir-se em cada canto, vontade de ser para sempre a última palavra”.[5] Narcisismo da alma coletivo, uma política de vingança que se oculta na forma de amor cristão. É amor na mesma medida que qualquer amor narcísico, ou seja, você precisa esquecer o que é, e deixar tudo o que é seu, e tornar-se um idêntico a mim mesmo.



[1] DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 52.
[2] Idem, ibidem.
[3]  Bíblia (I S. Pedro 2: 9).  
[4] DELEUZE, G., Crtique et cliínique,  p. 54.
[5] Idem, p. 53.

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