Segunda síntese II

O mesmo não acontece quando a síntese disjuntiva, de distribuição em cadeias, tem seu uso pervertido em ilegítimo (exclusivo e limitativo). Trata-se do ideal de certa utilização das sínteses disjuntivas.

 É a binarização que divide tudo em pontos cardinais. Aqui os gonzos, os cardos, submetem o tempo que “permanecem em seus gonzos, há uma subordinação ao movimento extensivo: ele é sua medida, intervalo ou número”.[1] 

Se fosse estabelecer uma oposição em relação ao tempo lógico da psicanálise, diríamos que esse tempo marcado é o tempo do paranoico, mas o tempo fora de seus gonzos é o do esquizofrênico.
A introdução dos primeiros movimentos na arte da geografia se dá por aí: a posição do corpo rege o mundo em apenas quatro pontos cardinais. O mesmo ocorre com as demais ciências, com suas raízes diferenciantes, tudo se estende a partir de um ponto. Não é só na escola ou na casa que as coisas se fabricam. 

O uso indevido das sínteses impregna territórios globais, neste caso, “é o domínio do ‘Ou então’, na função diferenciante da proibição do incesto: a mamãe começa aqui, o papai ali, e acolá tu. Deixa-te estar no teu lugar. (...)”. É quando se pergunta: quem é você? De que família você é? O que você é? “E ‘ser pai ou filho’ é também acompanhado por duas outras diferenciações sobre os lados do triângulo, ‘ser homem ou mulher’, ‘estar morto ou vivo’.”[2]

Nesse ponto, há uma estratégia na edipianização: “(...) foi o próprio Édipo que criou tanto as diferenciações que ordena como o indiferenciado com que nos ameaça. (...)”. Ele inventa um objeto a ser desejado para depois proibir o desejo de desejá-lo – essa é a lógica do incesto. 

A edipianização força o desejo a tomar como objeto as pessoas parentais diferenciadas, “e em nome das mesmas exigências interdita o eu correlativo de satisfazer seu desejo nessas pessoas (...)”. É quando o desejo, ameaçado de desejar o indiferenciado, passa a ter vergonha. “Mas foi precisamente ele que criou esse indiferenciado como reverso das diferenciações por ele criadas.”[3]
A segunda síntese opera por disjunção; é também chamada de síntese disjuntiva de singularidades e das cadeias. Em vez de uma e outra e outra, temos uma ou outra, ou outra etc. A vinculação aditiva cede lugar à alternativa. A energia Numen é o mesmo que vontade (divina ou majestade).[4] Aqui, os órgãos se ligam ao corpo sem órgãos constituindo uma síntese sobre sua superfície que forma cadeias.

Quando a disjunção é positiva, é esquizofrênica, a síntese é inclusiva, as categorias se aceitam e se vinculam; quando a disjunção é negativa, é capitalista, as disjunções, ao contrário, são exclusivas, separando e excluindo elementos. Sua máquina é a paranoica,[5] que funciona por repulsão, e sua produção é produção de registro: são os códigos registrados e inscritos sobre o corpo sem órgãos.[6]




[1] DELEUZE, G., Critique et clinique, p. 36.
[2]  DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe,  pp. 89-90.
[3] Idem, p. 93.
[4] Referência ao Deus de Schreber, “mas por que chamar divina ou Numen à nova forma de energia, apesar de todos os equívocos criados por um problema do inconsciente que só é religioso na aparência? O corpo sem órgãos não é Deus, muito pelo contrário. Mas divina é a energia que o percorre quando ela atrai a produção e serve de superfície encantada miraculante, inscrevendo-a em todas as suas disjunções. Daí, as estranhas relações que Schreber mantém com Deus. A quem perguntar: vocês acreditam em Deus? Devemos responder de maneira estritamente kantiana ou schreberiana: certamente, mas apenas como mestre do silogismo disjuntivo, como princípio a priori desse silogismo (Deus define a Omnitudo realitatis de onde todas as realidades derivadas saem por divisão)”. (Anti-Édipo, p. 28.)
[5] Essa atribuição, “máquina paranoica”, é uma alusão ao paranoico que inventa aparelhos pesados, máquinas espantosas para reprimir os desejos. A bicicleta é o instrumento predileto para os paranoicos. De Numem, deriva o sentimento do numinosum. Otto entende a característica essencial e exclusiva da religião “e, sem ele, a religião perderia suas características”. (OTTO, Rudolf. O sagrado: um estudo  do  elemento  não racional na  ideia do divino e sua relação com o  racional. Tradução de Prócoro Velasquez Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985, p.12. “Se lumen pode servir para formar luminoso, numen pode formar o numinoso”. (...) “Assim também se explica o que se acostumou a chamar de caráter fanático dessa religião. O sentimento do numen é a essência do fanatismo” (Idem, p. 12).
[6] A dimensão da pulsão de morte que busca na eliminação total da descarga um retorno ao inanimado tal como formulada por Freud em Para além do princípio do prazer parece-nos estar em conexão conceitual com a formulação do corpo sem órgãos no Anti-Édipo como “puro fluido indiferenciado, o improdutivo, o inengendrado”. “Instinto de morte é seu nome. Porque o desejo deseja também isso, a morte.” A partir da formulação de Artaud, Deleuze/Guattari vão conectar o corpo sem órgãos à pragmática do desejo. Trata-se de combater o desejo ligado à falta, reunindo o desejo com o corpo sem órgãos, para mostrar o que se processa no encontro entre corpos. O corpo sem órgãos como um contínuo circuito de intensidades marca a estranheza do plano de imanência do corpo sem órgãos em relação ao corpo orgânico.

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