A máquina portátil II
São Paulo questiona: “Quem me livrará
desse corpo que me leva para a morte?” Desde o Antigo Concerto, o corpo
é uma ignomínia para a alma espiritual. No dia do juízo, o sumo sacerdote não dormia
em casa, dormia no próprio templo, onde havia um lugar reservado para o sono
sagrado que antecedia o “dia do julgamento” – para ele, o juízo começava ao
anoitecer.
O sumo sacerdote não se deveria
“contaminar” com a mulher, por isso se afastava por uma noite antes dos rituais
sagrados. Havia o ritual de pequenos sacrifícios diários, juízos diminutos ao
longo do ano. No dia separado, uma vez ao ano, ocorria a expiação geral dos
pecados e um juízo subjetivo se instalava. Matança de animais, de manhã e à
tarde
Ninguém melhor do que Josefo para
descrever os sacrifícios: “Aquele que pecou voluntariamente, mas em segredo,
oferece um carneiro como a lei determina”; sacrifícios particulares,
sacrifícios públicos, ofertas de sacrifícios para os pecados involuntários,
ofertas para pecados sugeridos; sacrifícios para supostos pecados. Trata-se de uma
máquina espiritual, burocrática e contábil, forma primitiva para a base futura
de uma máquina burocrática estatal. “O Deus judaico inventa o sursis, a
existência em sursis, o adiamento ilimitado.”[1]
Por receber uma educação judaica, Kafka
não deixou escapar a ideia da moratória ilimitada: em O processo, é o
pintor Titorelli que elabora a teoria.[2] O déspota
deixa sempre uma pequena máquina de reserva (mais-valia maquínica) para captar
um novo fluxo que escapa.[3]
O santuário permitia interpretações
infindáveis, e as prescrições, as proibições, fazem do déspota um corpo pleno
sem órgãos. Foi preciso criar uma casta para manter a segurança da máquina
axiomática espiritual, segurança do ofício interpretativo dos códigos.
Com a tribo de Levi, nasceu o conceito de
consagrado (separado); depois vieram os massoretas, os intérpretes da lei, os
fariseus, saduceus, rabinos, uma herança medieval grega dos basileus. Os
sacerdotes faziam crer que os pecados não confessados e não abandonados seriam
punidos nesse grande dia.
O pecador inconfesso seria fulminado pela
glória de Deus lá no lugar onde se encontrasse, no meio da multidão. O sumo
sacerdote entrava no santíssimo com uma corrente amarrada a um dos pés para ser
arrastado de lá, caso fosse ele também consumido. Havia o sacrifício diário e
perpétuo: um animalzinho inocente, em geral uma ovelha, era sacrificado pela
manhã e outro, também uma ovelha, à tarde. Esse serviço diário se fazia no
pátio do santuário e na primeira parte chamada de santo. Mas, no dia da
expiação, o grande sacrifício ocorria no interior do santíssimo. A parte mais
profunda da santidade era também a mais temível e ameaçadora. Mas ainda se
tratava de um juízo sobre um eu individual; era necessária uma sofisticação
teológica para que o sistema de juízo alcançasse dimensões universais. Flavio
Josefo reconhece com veneração a existência do ritual do santuário:
E
como os cristãos poderiam não se deixar comover por esse santo respeito, pois a
mesma história nos diz que os ilustres e tão célebres conquistadores, Ciro,
Dario e Alexandre, embora idólatras, não puderam deixar de sentir veneração
pela majestade e pelas cerimônias desse templo, que era apenas figura daqueles
onde o Deus vivo habita hoje, sobre os nossos altares.[4]
[1] DELEUZE,
G./GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 154.
[2] Idem, ibidem (nota de rodapé).
[3] “Os animais de sacrifício deveriam ser puros, sem máculas,
segundo as ordens de Moisés. Os filhos de Aarão, Nadab e Abihu, tendo oferecido
outras vítimas, não eram as que Moisés determinara que se oferecessem, então as
chamas se lançaram contra eles com tanta violência que lhes queimaram o
estômago e o rosto, e eles morreram, sem que fosse possível socorrê-los (...).
E Moisés proibiu que os lamentassem, a fim de dar a conhecer, que, tendo-se
honrado com dignidade do sacerdócio, a glória de Deus lhes era mais sensível do
que o afeto particular” (JOSEFO, 1956, livro I, p. 315).
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