Romaria

Um grupo de religiosos - crianças, adultos e idosos - seguem um padre que ergue uma cruz e cantarola  um ritornelo repetidas vezes - avé, avé, avé Maria - sendo que, com o cansaço e as repetições enfadonhas, o avé Maria já soava avéimaria. 

A figura do padre catalão era assustadora: cabelos arrepiados, desalinhados em torno do rosto coberto pela barba longa - e também, desalinhada. Sobrancelhas grossas, olhos negros e agudos, que nada deixava fora de sua visão. O padre era um verdadeiro guardião da cristandade local, mantinha seu pequenino rebanho bem próximo de sua batina. Vi, muitas vezes, esse padre avançar como se fosse estrangular o menino que perturbava a cerimônia sagrada. Mas ele nunca agrediu fisicamente nem os animais que usava em suas visitas pastorais. 

As ruas da pequena Belém de Maria, eram estreitas, como se fossem os caminhos por onde Cristo carregou a cruz. A pequena romaria ocupava toda a largura da rua, entre as pequeninas casas de barro, germinadas umas às outras, justapostas como se se unissem para enfrentar o desamparo do mundo. 

Tinha que admitir, o padre era incansável. Puxava o canto dos romeiros até ficar rouco de sofridão. Suava a batina até o limite do tecido úmido que escorria junto ao chão. Todas as sextas, ao entardecer do dia lá se ouvia o avé, avé, avé Maria. 

Era o maior espetáculo da cidade. Lá não haviam festas que não fossem religiosas - forró, nem pensar. O padre catalão não permitia. Além de ser guardião da fé do povo, o temível padre funcionava como uma máquina do tempo. 

Lembro de muitas madrugadas em que ouvia a voz familiar do padre anunciando a cheia - um temporal que se formava nas acidades acima e que aglutinava todas as águas que desembocavam no pequeno vale da bendita Belém de Maria. O padre cruzava todas as ruas vociferando: 
 - Olha a cheia!!!!!! Olha a cheia!!!! Deus vai proteger os seus filhos, mas vai punir os infiéis!!!!
Raramente ele errava nessa previsão catastrófica. A cidade enchia até as bordas, e quem não escutasse o alarido do homem de Deus perdia todos os seus pertences - eu perdi uma vez.

Ele conseguia fazer um sermão de "tremor e temor" em relação às forças da natureza. Nada escapava, o sol quente da Zona da Mata, as doenças tropicais, a falta de chuva ou o seu excesso nas cheias, tudo era motivo de inspiração para que o padre fizesse um verdadeiro juízo de Deus sobre a cidade.

As vezes lembro desse homem com uma certa compaixão. Ele fazia tudo aquilo e sua vida se resumia àquelas tarefas que se repetiam anos adentro - ou afora. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sabiá

AS MÁQUINAS DE GUERRA CONTRA OS APARELHOS DE CAPTURA DO ESTADO

Máquina burocrática