O Apocalipse de D. H. Lawrence III

Esse estrato de destruição está presente em todo o Antigo Testamento, é judeu. A ordem vinda de Deus para os reis de Israel sempre foi a destruição total das cidades inimigas. Não deixar pedra sobre pedra, diziam os profetas, nem crianças nem animais. Nada que fizesse lembrar a existência de um povo derrotado. O lago de fogo e enxofre sulfuroso da condenação dos infiéis no Apocalipse constitui as reminiscências do estrato pagão, um avatar dos elementos da natureza, mas muito mal usados.
A Nova Jerusalém traz consigo o mais terrível juízo e a mais dolorosa punição, em que o inferno perde completamente a antiga relação com a natureza. No caso pagão, o fogo agindo sobre a água a transforma em sal, e a injustiça sobre uma criança faz dela amarga e cruel com as outras crianças: “Mesmo os antigos infernos judaicos, de Sheol e de Geena, eram lugares relativamente brandos, eram Hades desconfortáveis”, mas, se comparados com o terror da Nova Jerusalém, com “seu lago de enxofre incandescente por natureza, onde as almas ardem para sempre”,[1] aqueles ficam em desvantagem, não há mais uma relação intrínseca.
Esse é o inferno da vingança. Os cavalos, os dragões, a mulher, as serpentes, tudo vai se desprendendo de seu sentido simbólico. Deleuze/Lawrence discutem as distinções entre o símbolo pagão e as alegorias do Apocalipse de João: o símbolo no paganismo não representava o fechamento do pensamento, mas estava ali como “potência cósmica concreta”.
Há uma diferença entre o emprego do símbolo e a alegoria do encerramento de um poder final do Apocalipse. Conforme Deleuze, a troca de um pelo outro “substituiu o poder de decisão pelo poder do juízo”, por isso o Apocalipse é um ponto final da história. O espetáculo das visões exige um deciframento que conduz ao fim. O Livro da Revelação é o livro do fim do mundo.
Ver é o sentido que nos separa, a alegoria é visual, ao passo que o símbolo convoca e reúne todos os outros sentidos (...). O símbolo, por sua vez e feito de conexões e disjunções físicas, e mesmo quando nos encontramos diante de uma disjunção, é de modo tal que algo continua passando na separação, substância ou fluxo, pois o símbolo é o pensamento dos fluxos, contrariamente ao processo intelectual e linear do pensamento alegórico.[2]
O vasto “entrecruzamento de linhas” das figuras simbólicas com os animais é encerrado, em sua plenitude, na tese de um juízo final. Os cavalos, as cores, os gêmeos, as mulheres, o dragão, os selos que se abrem uns após outros, os animais, tudo fica suspenso no tom sério do juízo final. A meta final é “desconectar-se do mundo e de nós mesmos”.[3] Desse modo, ao se constituir em um livro de “destruição coletiva”, o Apocalipse representa um protocolo da paranoia coletiva.



[1] Idem, ibidem.
[2] Idem, p. 66.
[3] LAWRENCE apud DELEUZE, G., Critique et Clinique,  p. 66.

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