Máquinas de guerra II


O atributo é o útero da composição, ou seja, é onde as forças, as intensidades ou as potências se relacionam. Força, intensidade e potência se diferenciam de forma, de figura e de imagem. Nada disso sobrevive, nem forma, nem figura ou imagem; mas apenas força, potência e intensidade. 
São forças supra-humanas, desejo sub-humano, afectos e devires. O plano de composição é onde pululam as intensidades do plano de imanência; é um plano informal, não tem forma, são intensidades e forças que se ligam. Ele já é atualização, ao mesmo tempo virtual e atual. Ele é virtual porque a potência necessita do ato e às vezes ele só é potência.
A composição ocorre sempre no ato, mas o ato não é necessariamente figurativo ou orgânico; ao contrário, o ato é anterior ao órgão, à figuração ou à existência. O ato é que atualiza a potência, já forma um diagrama –[1] no pensamento de Foucault, um diagrama de poder. O diagrama a que estamos nos referindo funciona na atualização de potência, mas ainda não é um estrato. O estrato já é plano de organização.
O sinônimo de plano de organização é estrato: imagens, figuras, ideias feitas, corpos prontos, tudo isso é plano de organização.
O corpo é um plano de organização. Há aí o plano de composição e o plano de Imanência, concomitantemente, mas, quando um estrato separa o homem daquilo que ele pode, ele fica reduzido tão-somente ao plano de organização. 
Por isso devemos nos preocupar com aquilo que se está fazendo de uma alma e de um corpo.[2] “O que estamos fazendo de nós mesmos?”, tratando, em particular, de indagar “o que estamos fazendo de nossos corpos?”[3] O corpo e a alma do homem moderno são fabricados na forma de expressão e na forma de conteúdo. 
A forma de conteúdo inventa o corpo, enquanto a forma de expressão inventa a alma.

Conforme Deleuze/Guattari concebem duas maneiras de conceber o plano, ou dois planos.[4] Um plano de organização ou desenvolvimento, “estrutural ou genético”, que é a mesma coisa. Vejamos o que dizem:

Um plano, com efeito, é tanto de organização quanto de desenvolvimento: ele é estrutural ou genético, e os dois ao mesmo tempo, estrutura e gênese, plano estrutural das organizações formadas com seus desenvolvimentos, plano genético dos desenvolvimentos evolutivos com suas organizações. Tudo o que se vê, tudo o se toca, as figurações, tudo isso já é composição e organização. O plano de imanência está por trás gerando tudo isso, mas não é sensível nem visível. São apenas matizes nessa primeira concepção do plano.[5]

Ele é condição de desenvolvimento e gênese das formas e também de formação dos sujeitos, mas é um plano transcendente, pois ele próprio não se encontra sujeito à criação. O plano de organização se assenta sobre o plano de forças pulsionais, que, no Anti-Édipo, passa a ser o corpo sem órgãos. A organização do corpo pode até produzir um corpo pleno sem órgãos, mas já estaremos sujeitos ao plano de organização, que cria os órgãos sobre o plano de imanência.


[1] Esse é o conceito de Foucault que corresponde ao conceito de máquina abstrata de Deleuze/Guattari. “(...) todo diagrama é intersocial, e em devir. (...). Ele duplica a história com um devir”. Essas ideias podem ser resumidas em uma frase: “As máquinas abstratas consistem em matérias não formadas e funções não formais”. Esse diagrama, ou máquina abstrata, segundo Gilles Deleuze, não é único, há uma infinidade de diagramas. Podemos conceber um número X de diagramas tanto quanto podemos considerar um número X de sociedades diferentes (campos sociais). Essa máquina abstrata é imaterial e fluida (DELEUZE, Gilles, Foucault, p. 45, e DELEUZE/GUATTARI. Mille plateaux, p. 637.
[2]  “Para Foucault, o corpo é, ao mesmo tempo, uma massa, um invólucro, uma superfície que se mantém ao longo da história. Sintetizando, pode-se dizer que, para Foucault, o corpo é um ente, composto por carne, ossos, órgãos e membros, isto é, matéria, literalmente um locus físico e concreto. Essa matéria física não é inerte, sem vida, mas sim uma superfície moldável, transformável, remodelável por técnicas disciplinares e de biopolítica. Com isso, o corpo é um ente – com sua propriedade de “ser” – que sofre a ação das relações de poder que compõem tecnologias políticas específicas e históricas. Ao contrário do sujeito – que não existe a priori, mas é uma invenção pautada em discursos e relações de poder-saber que o constituem –, o corpo em Foucault preexiste como superfície. Contudo, como objeto de relações de poder-saber que constituem atitudes corporais e formas de sujeito, o corpo sofre ações baseadas em diferentes tecnologias historicamente elaboradas. Pode-se dizer que o corpo seria um arcabouço para os processos de subjetivação, a trajetória para se chegar ao “ser” e também dele ser prisioneiro. A constituição do ser humano, como um tipo específico de sujeito, ou seja, subjetivado de determinada maneira, só é possível pelo “caminho” do corpo”. (MENDES, L. C. “O corpo em Foucault: superfície de disciplinamento”, Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n. 39, pp. 167-181, abril de 2006.) Ver FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1997,e  “Poder-corpo”. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996.
[3] Referência à pergunta foucaultiana que Margareth Rago escolheu como legenda do “Colóquio Foucault-Deleuze”: o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos? Com o mesmo título, uma outra versão foi publicada em Margareth Rago, Luiz B. L. Orlandi,  Alfrerdo Veiga-Neto (orgs.).  Imagens de Foucault e Deleuze – ressonâncias nietzscheanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, pp. 217-238.
[4] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Qu’est-ce que la philosophie?, pp. 38-59.
[5] DELEUZE, G./GUATTARI, F., Mille Plateaux,  p. 324.

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