O juízo judaico-cristão: a dívida eterna



No judaísmo, há um sistema de juízo, mas de alcance nacional. Ainda não é esse o juízo que julga o mundo; será preciso haver uma grande torção teológica para que um sistema de juízo alcance a universalidade. Antes, porém, é necessário que o Eu individual ceda lugar ao grande eu coletivo. Com Moisés no deserto, o sistema de juízo tem uma proporção local e regional, o juízo é para as 12 tribos de Israel, não tem a pretensão de julgar o mundo. Ainda não existe uma visão de mundo suficientemente abarcante que pudesse justificá-lo como conjunto de inimigos do povo escolhido. Trata-se de um bando de escravos que precisa ser domesticado para se submeter.
Em Moisés, a dívida é para com o Deus monoteísta, mas tudo se resolve com fluxos de sacrifícios diários (touros, vacas, cabritos, bodes, ovelhas, aves e farinhas), fluxos de sangue de animais sacrificados, a fim de resolver a culpa pelos pecados diversos. Mesmo que os sacrifícios sejam de uma ordem contínua, os penitentes se sentem livres para festejar a expiação diária e anual.
A fundação do Estado judeu começa com o êxodo dos escravos fugitivos, pela grandiosidade do culto em torno do santuário terrestre. A grande estratégia é a “ida para o deserto, a fim de impor as mais duras provas, as mais secas, e testemunhar tanto da resistência de uma ordem antiga quanto da autenticação da nova ordem”.[1]
A bem-sucedida retirada de um grupo de escravos foi assunto pouco significativo para os egípcios do tempo de Ramsés II (século XIII a.C.), não merecendo menção em seus registros. Para os hebreus, foi um evento de importância cósmica, precedido de pragas miraculosas e acelerado pela intervenção direta do próprio Deus.
Moisés, o arquiteto do Êxodo, líder que, pacientemente, transformou uma turba de fugitivos degradados por anos de escravidão em uma nação monoteísta, fez da história desses fugitivos a fundação do Estado-nação judaico. É mais do que a fundação de um Estado despótico; para que essa estratégia tenha êxito, é preciso haver a interiorização de uma subjetividade mais consistente do que a antiga formação. “Moisés foge da máquina egípcia para o deserto e aí instala sua nova máquina: arca santa e templo portátil, e dá a seu povo uma organização religiosa-militar.”[2]



[1] DELEUZE, G./GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe, p. 228.
[2] Idem, p. 229.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sabiá

AS MÁQUINAS DE GUERRA CONTRA OS APARELHOS DE CAPTURA DO ESTADO

Máquina burocrática