A máquina capitalista civilizada II

A mercadoria é um produto cuja magnitude engloba um trabalho abstrato e remete aos diferentes trabalhos, qualificados e necessários à sua produção. Um rosto belo e sorridente remete à venda de produtos manufaturados no chão das fábricas, por exemplo. A moeda se institui a si mesma em quantidade abstrata, capaz de equivaler a qualquer coisa, ao valor de qualquer quantum ou a uma magnitude abstrata particular.
Não é que o capitalismo tenha inventado a mercadoria ou a moeda, mas as “mercadorias” das sociedades primitivas se moviam em um círculo fechado de mercados restritos sem equivalente abstrato[1] universal, e o cunho da moeda estava reservado às sociedades despóticas, ao imperador. Será o próprio imperador que aparecerá na “cara” da moeda.
A liberação desses dispositivos é o que nos faz passar dos fluxos codificados às quantidades abstratas. Os fluxos descodificados irrompem no campo social à margem dos códigos locais e das inscrições estatais ou imperiais:[2] os fluxos só se relacionam com fluxos, nesse caso temos uma natureza esquizofrênica. Quando a relação é de código e fluxos, passamos para a natureza paranoica, o capitalismo tenta se mover na lógica esquizofrênica, mas é na paranoia que ele se firma.
Todo fluxo é expressão de outro nele contido, ou também pode estar contido noutro que o expressa. É que um investimento libidinal, tal qual nos indicam Deleuze/Guattari, é um investimento de fluxos, fluxos sobre fluxos,[3] modelo esquizofrênico, portanto.
O capitalismo difere das sociedades despóticas também porque deixa de ser a sociedade da hipercodificação para ir além. A sociedade capitalista civilizada não é a sociedade da sobrecodificação; ela deixa a mais-valia do código e avança para a mais-valia do fluxo.[4]
Como já mencionado, esta sempre foi a questão de todo socius: codificar fluxos, registrá-los, para que possam ser controlados ao máximo. No momento da ineficiência da máquina territorial, a máquina despótica sobrecodificou os códigos primitivos na cadeia do significante despótico, uma espécie de sobrecodico. “Mas a máquina capitalista, enquanto se estabelece sobre as ruínas mais ou menos longínquas de um Estado despótico, encontra-se em situação totalmente nova: a decodificação e a desterritorialização dos fluxos.”[5]



[1] Nas sociedades primitivas/selvagens, não aparece a necessidade da invenção do simulacro produzido em cima do produto. Não há fetiche de venda nas trocas, como na civilização capitalista: o sorriso da atendente, a embalagem fulgurante dos produtos, a sedução das marcas etc. Em uma aula proferida no Cours Vincennes, em 22/02/1972, Deleuze define que “esses fluxos são incomensuráveis, no sentido de que são de potências diferentes e, ao mesmo tempo, independentes entre si, permanecem em estado de virtualidade, independentes em suas determinações recíprocas. As trocas de “mercadorias” nas sociedades primitivas se encontram significadas nos mesmos códigos de valor e de pertencimento da coletividade.
[2] Como demonstra Deleuze, nisso consiste o terror de toda sociedade, ou seja, a liberação dos fluxos livres de qualquer codificação que irrompem no meio da sociedade.
[3]  DELEUZE, G., Anti-Oedipe et Mille Plateaux, Cours Vincennes, 22/02/1972.
[4] Idem.
[5] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe,  pp. 40- 41.

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