O Tempo


    Em Hamlet, Shakespeare diz: o tempo está fora de seus gonzos, ou seja, "andam desarticulados os tempos". A percepção do gênio é maior do que o tempo das convulsões sociais de nossos tempos ou dos seus dias. São os portais do tempo que não têm mesmo gonzo algum - o tempo flui na direção da seta ou circula. 

    Não importa, ele flui ou retorna infinitamente trazendo uma repetição de novidades eternas. Eis a nossa questão: o tempo e nosso corpo. São passagens de três dimensões do tempo em nós. São três sínteses, uma é passiva, o tempo opera em nós sem que nada possamos fazer. Um Eu fragilizado que se fratura, atravessado pelo tempo liso inaugura a passividade da primeira síntese. 

    Foi Freud quem disse primeiro dos neurônios estriados e do conjunto de outros, não estriados. Nos últimos, a energia flui livremente. E nos primeiros, uma Quantidade é retida para dar início ao Princípio de organização daquilo que, mais tarde, o pai da psicanálise chamaria de aparelho psíquico. A filosofia vê nesse primeiro momento uma passividade do Eu que contempla uma cena por vir. Trata-se da primeira síntese do tempo, uma contração operada pela fisiologia nos termos freudiano. 

    O tempo é uma afecção no cérebro que gera uma contração-contemplação. Um aparelho psíquico em formação ainda, a síntese originária que garante a repetição. Essa repetição é a espera no espírito que contempla. É preciso rever a filosofia no que há de encontro com a ciência da fisiologia do cérebro. Foi Damásio, lendo Espinosa, quem prenuncia o “erro cartesiano”. Mente e organismo são uma e única coisa. A mente é a extensão do corpo, afirma Espinosa.

     Por outro lado, Gilles Deleuze, denuncia a morte do senhor das Sínteses (Deus) em consequência da rachadura do Eu, que pensa, no cogito cartesiano. É a forma pura do tempo que racha o Eu, mas que também é, dessa “violência”, que insurge o pensamento. O pensamento não seria um ato espontâneo do “Eu pensante”, mas uma violência que o tempo vivo impõe sobre a estrutura mental que circula no interior do cérebro. E que dele depende para se tornar em processos. 

    É Kant quem introduz o tempo puro no pensamento. E levando em consideração que o pensamento é extensão do corpo, a parte consciente do corpo. Ou, dizendo de outra maneira: o pensamento é a representação que o corpo faz de si mesmo. Ainda não existe uma estrutura simbólica da representação, não há representante e representado. A linguagem ainda não foi introduzida. 

    Mesmo na segunda síntese, que é ativa, momento das ideias, o pensamento é movente porque se apoia em partículas infinitesimais de um tempo puro que nem mesmo se deixa segmentar na consciência. Freud introduz o conceito de instinto de morte naquilo que a filosofia pensa como a forma pura do tempo, demolição de tudo. É preciso criar o hábito para que nele a segunda síntese se efetue. Não é mais a simples contemplação, mas a espera de uma repetição ampliada com informações agrupadas, marcações do antes e do depois, reflexões e julgamentos. 

    Nesse ponto já existem operações sofisticadas, representantes e representados. Conforme Espinosa, as noções representadas de para cima e para baixo é o estado da consciência: de alegria como sendo para cima e a de tristeza associada à direção inversa. A imagem do tempo como uma reta infinita é o que dá à intuição do tempo sua forma adulta. O que dá ao sujeito a imagem do horizonte global, onde se vê também, confrontado com a prova derradeira, o pensamento da morte. Mas a linha reta do tempo é apenas uma representação. 

    A consciência é também a consciência do tempo que escoa para o fim do sujeito. A mente atualiza tudo na operação temporal, onde no mesmo tempo, o virtual tudo desfaz e obriga o sujeito a reatualizar. O eterno retorno. É a “dança” entre virtual e atual que realiza um movimento no tempo sob a direção de uma flecha temporal que vai do virtual ao temporal. Nesse ponto, o sujeito não é mais passivo, ele é compelido a pensar.

     Operações cerebrais complexas são requeridas, e o sujeito é forçado a pensar. Estamos na segunda síntese, é a fase do fundamento circular do tempo, síntese de um passado puro que faz com que todo o presente passe; o presente aqui é apenas atualização do tempo. O tempo nessa fase é circular porque o desmoronamento das formas impõe atualizações. 

    O virtual pôs tudo em fuga e o sujeito reúne os pedaços para atualizar. A sensibilidade vital primária já se encontra aqui, o presente vivido já constitui no tempo um passado e um futuro. Este futuro aparece na necessidade como forma orgânica da expectativa; o passado da retenção aparece na hereditariedade celular. Já estamos na ordem do Princípio de prazer. Uma expectativa espera a repetição da experiência da satisfação anterior. O cérebro se fundiu em processos mentais. 

    O organismo se representa em linguagem e constituem juntos blocos de memórias. Nesta passagem, o hábito é um presente vivo do passado (uma marca) que antecipa o futuro. E por fim, a terceira síntese que arrasta tudo para uma espécie de repetição sem identificações ideais. 

    O “aparelho psíquico” freudiano enfrenta o que é incriado ou o que está sempre já-aí, síntese de todo o tempo, cujo presente e futuro são apenas dimensões; é o passado que se constitui em memória, base estrutural de retorno que recolhe todo o tempo, ele persiste e insiste como memória de onde o processo criador tira sua base. 

    Nesse lugar atópico se encontra o jogo de forças ética, estética e política, onde natureza e sociedade se acham em luta. Por isso dizemos, homem e natureza fazem parte de um mesmo ecossistema.

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