Lembranças
Os trilhos paralelos de
ferro serpenteavam por entre os montes do lugar
Um vale onde o verde
predomina, mas em intervalos de tons de verde, cinza, apareciam multiplicidades de tantas cores de flores e folhas
Nossa casa, assim como
tantas outras, sobressaia do verde em sua cor branca
Sob a neblina e orvalho da
manhã, formava-se uma imagem de um vivo quadro de parede antiga
A casa branca de telhado musgo,
de um envelhecido verde de lodo, testemunha de tantas estações
Era ela mesma, a casa, uma
estação antiga e abandonada pelo progresso que, junto com a velha máquina
esfumaçada, que com seu apito estridente das madrugadas, foi-se também para nunca
mais voltar
A casa branca, antiga
estação, de onde tantos chegavam e outros tantos partiam, ficou à sombra do
vale juntamente com os velhos e enferrujados trilhos
Deveria ser possível
legislar sobre a conservação dos restos de sentido das vidas que ali viveram
Esse tipo de memória não
adoece ninguém, mas vivifica a alma. É um quadro de natureza viva. Não
guardamos em segurança os de natureza morta?
A casa branca faz esquina
com a estrada de ferro que se molda ao contorno do desvio sinuoso, imitando as
curvas de um belo corpo de mulher
Sob o lânquido sol de maio,
são os raios de luz tímidos de um frio verânico que repousam sobre as velhas
telhas verde musgo emprestando a
luminosidade própria da arte que imita a natureza
A luz cai suavemente sobre
os trilhos da velha estação desfazendo as brumas que fogem com a chegada do
sol. É um quadro vivo que se repete sem nunca se repetir na semelhança do
ontem, mas se repete num devir-quadro de um eterno amanhã que nunca cessa de
chegar
Ainda é possível ouvir com a
imaginação o apitar da velha Maria Fumaça. Mas só os mais velhos sabem disso.
Ela vem cada manhã, levando moradores dos vales, e volta ao final do dia
trazendo-os de volta
Do lugar onde me
encontro, posso ver a curva do ferro
sinuoso, úmido sob a neblima, mas a imagem do ferro que faz a curva, deixa a
aparência de uma flexibilidade própria do chumbo, mas é o ferro duro que dura, testemunhando
uma história que ele saberia em detalhes minunciosos.
No começo da curva, o verde
é intenso, mas é o verdejar que torna o verde intenso, como se a cor verde
fosse de um verde instável, e é. Não existe verde congelado como a estrutura de
ferro dos trilhos. No caso do ferro, são as curvas dos trilhos que emprestam o
movimento de velocidade e lentidão ao ferro. Mas mesmo o ferro tem a sua
característica intensa quando se contrai sob o frio e se dilata sob o calor.
Muito mais o verde das
folhas, que oscilam sob a pressão do ar, sob as contrações do calor e do frio, sem falar da
interioridade do organismo-folha, que é vivo e se expande e sobe ao seu limite do que lhe é possível. Sob
os tons de claro e escuro da luz e sob o evanescer da névoa da manhã, da
neblina do entadecer, o verde foge em tonalidades além do sistema sensório
motor dos olhares que nada percebem.
Ao se aproximar da primeira
curva, o verde vai se dissipando na distância e se confundindo na atmosfera
lânquida do horizonte prateado. Essa solidão das pequenas cidades remete-se ao que há de mais primitivo em nós...
A literatura que empresta um pouco de si à filosofia recebe em dobro. Belo texto: descritivo quando toma do pintor as tintas; narrativo, quando "ouve com a imaginação" um tempo que houve, e não nos ouve mais. Parabéns, Clécio: pela beleza da linguagem, pelo conteúdo substantivo do blog.
ResponderExcluirA pintura de Claude Monet aos olhos de Gaston Bachelard. Onde haverá mais beleza, na pintura ou no texto? Difícil dizer...
ResponderExcluir"Um dia, Claude Monet quis que a catedral fosse verdadeiramente aérea - aérea em sua substância, aérea no próprio coração das pedras. E a catedral tomou da bruma azulada toda a matéria azul que a própria bruma tomara do céu azul... Num outro dia, outro sonho elementar se apodera da vontade de pintar. Claude Monet quer que a catedral se torne uma esponja de luz, que absorva em todas as suas fileiras de pedras e em todos os seus ornamentos o ocre de um sol poente. Então, nessa nova tela, a catedral é um astro doce, um astro ruivo, um ser adormecido no calor do dia. As torres brincavam mais alto no céu, quando recebiam o elemento aéreo. Ei-las agora mais perto da Terra, mais terrestre, ardendo apenas um pouco, como fogo guardado nas pedras de uma lareira."
Grato Sergio, por ler esses singelos textos e por contribuir com outros infinitamente mais belos e profundos... foi um dia, numa manhã quando entrava na Livraria Travessa da R. Sete de Setembro, entrava para tomar o café de sempre e olhar os livros. E lá estava, na parede do lado direito, um quadro esverdeado de uma antiga estação abandonada... pedi que me vendessem o quadro, mas não foi possível, não era pra venda. Como não queria esquecê-lo, ousei descrevê-lo.
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