Experimentação com drogas III

São sonhos sem sono ao modo kafkaniano. É preciso estar de olhos bem abertos para trabalhar os sonhos. Longe das conotações psicanalíticas e/ou apocalípticas, em que os sonhos são de sentido interpretativo, os sonhos em sono lançam o sonhador à falta de sentido, à “melancolia ou até mesmo a uma depressão suicida”.[1]
À sua maneira, Castañeda busca um corpo sem órgãos. São as mesmas subidas e descidas perigosas[2] para produzir para si um corpo sem órgãos. “Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte.”
As doses de prudência não têm relação com o medo; o medo espanta os devires sensíveis. Tanto Deleuze/Guattari quanto Castañeda falam de “agitação molecular”, espaços-entre que racham o Eu identitário, portanto alteração de estados de consciência. “Argumentou que eu não deveria perturbar o local de poder com sentimentos desnecessários de medo ou de excitação.”[3] 
É uma questão de embriaguez. Longe das infrutíferas discussões morais, a embriaguez tem um sentido mais próximo do estado de beatitude espinosista. É estar tomado pela vida profunda, onde o Eu vacila para dar lugar ao “sonho” ilimitado: desertos, terras estranhas nunca antes visitadas. Sonhos “muito além do normal, em matéria de nitidez”.[4]
É que não se chega ao corpo sem órgãos com a totalidade de Eu; tal experiência é afastada com os ruídos do Eu. Ele (Eu) quer conservar tudo o que tem: o desejo pelos objetos e fantasmas, por exemplo. 
Por outro lado, a prática da criação de um corpo sem órgãos é uma experiência de desejo sem produção de fantasmas de objetos perdidos que se relacionam com a reminiscência de Eu que é um organismo povoado de identidades fixas. O corpo sem órgãos é povoado de intensidades semoventes, devires portanto.
Nessas viagens, só é possível garantir terras porvir. O mundo dos sonhos se abre depois que o guerreiro aprende a impedir o diálogo interno, “modificar nossa concepção do mundo é o ponto nevrálgico da feitiçaria... e cessar o diálogo interno é o único meio de se conseguir isso. O resto é só enchimento”.[5] O que se vê nos sonhos, o que se faz com essas experiências com tais drogas, não tem a menor importância para o xamã; tudo o que importa é “parar o diálogo interno”.
A condição de uma boa guerra é que tal modificação – cessar o diálogo interno – não seja perturbada, para que não se espante a chegada dos devires sensíveis. Saltar para o exterior da consciência, ouvir “miríades de ruídos”, multiplicidades impossíveis de distinção referenciais à consciência. 
“Não era coisa que envolvesse meus processos mentais; não era uma visão, tampouco parte do ambiente, no entanto minha consciência fora atraída por alguma coisa.”[6] Deleuze diz do estado de alteração da percepção através das noções aludidas à percepção e às afecções do corpo. 
Não são percepções porque ele não encontra na consciência qualquer imagem similar com que os dados da natureza possam identificar-se: são percetos, blocos de sensações não humanas da natureza. Não são emoções, porque, igualmente, não há registro na memória corporal anterior que se identifique com a sensação imediata – nesse sentido, são afectos.



[1]  Idem, ibidem. 
[2] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux,  pp. 185-204.
[3] CASTAÑEDA, C. Portal para o infinito. Rio de Janeiro: Nova Era, 1998, pp. 18-19.
[4] Idem, ibidem.
[5] Idem, p. 20.
[6] CASTAÑEDA, C., op. cit., p. 21.

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